O Brasil e o cavalo selado
Roberto
Amaral
A
enxurrada diária de dólares que ingressa no país, destinada quase toda ela a
operações especulativas, é estimulada pela nossa política de juros altos que vem dos tempos cada vez mais longínquos
da inflação alta, quando o Estado, para financiar seus gastos, era obrigado a se submeter aos
ditames do capital financeiro. Ora, há cerca
de duas décadas que a inflação está sob controle e o Governo ainda hesita em
completar a desindexação da economia, providência indispensável para que os
juros caiam para patamar civilizado. Enquanto houver diferença significativa
entre a taxa de juros internos e a de juros externos o capital especulativo correrá
para cá, a não ser que o Governo estabeleça controles sobre o fluxo de
capitais, como recomendado hoje até por economistas do Banco Mundial.
Mais
ainda, da associação de juros altos à
depreciação da moeda norte-americana decorrem
algumas conseqüências graves, a começar pela invasão de importados, principalmente de
manufaturados, e principalmente chineses. Isso que pode ser chamado de crise cambial está a refletir-se
na produção industrial, atacada no mercado interno via concorrência dos
importados e contundência dos juros altos, e prejudicada no acesso ao mercado
externo, via desvalorização do dólar.
EUA, Europa e China, isto é, todas as grandes
economias, desvalorizam artificialmente suas moedas para assim poderem exportar
mais, e para exportar mais reduzem a capacidade de produção dos demais países
numa concorrência desleal e predatória que compreende barreiras alfandegárias claras
ou mascaradas e subsídios. Essa política
vem de décadas, duas pelo menos, e
portanto antecede à crise financeira global (a história é velha: livre-cambismo
como receita para as colônias, protecionismo como prática da metrópole), a
qual, agora, é apenas pretexto para seu
aprofundamento. Diante dessa política, a OMC nada faz, porque seu conceito de
livre-comércio é seletivo. Depende dos interesses das grandes potências. Os emergentes e os mais pobres, de sua parte, ainda não encontraram alternativas de defesa,
nem lançam mão, de forma concertada, de medidas
clássicas, paliativas ou não, como a
regulação dos fluxos de capitais, como o estabelecimento de cotas de
importação, a taxação das importações e a desoneração das exportações (acompanhada
de financiamento) ou mesmo o controle
cambial, ou ainda uma política de Estado que leve o sistema financeiro privado
a investir na atividade produtiva. Limitados, como é sabido, por contradições,
os BRICs se vêem, até o momento, impossibilitados de agir como um coletivo.
Nosso real sobrevalorizado é consequência
da desvalorização artificial do dólar, do euro e do yuan. É verdade. Mas essa
não é a única explicação para a crise da indústria nacional, que não se
encerra, tampouco, na alegada baixa produtividade nacional. É evidente que não
se podem pôr de lado os efeitos dos já mencionados juros ainda estratosféricos,
nem muito menos o peso da carga tributária, nem o alto custo da burocracia, nem
as deficiências de infraestrutura e
logística em geral (com destaque para os sistemas viário e portuário), nem
muito menos o custo do capital para quem não tem acesso ao sistema BNDES, nem o
custo da energia (cujos preços subiram na última semana para R$ 188 por
megawatt-hora, o mais alto valor em 17 meses), nem a dependência de insumos e tecnologia, importados.
Tudo isso precisa ser levado em conta,
mas há mais o que considerar, como os custos do financiamento da dívida
pública, que em 2010, com juros e amortizações (incluindo refinanciamento), consumiu
a bagatela de R$ 635 bilhões, nada menos que 45% dos recursos da União! Recursos
os quais poderiam, em parte, estar sendo mobilizados para o ataque às nossas
notórias deficiências nas áreas de serviços e infraestrutura. Muitos dos
problemas nomeados no parágrafo anterior poderiam ser enfrentados.
Sem descartar todas essas questões
objetivas, é preciso pôr na mesa o que nos parece ser o núcleo de todos os
problemas: a inexistência de uma política industrial que associe o papel
indutor do Estado (com destaque para suas responsabilidades estratégicas) a um mínimo de protagonismo do empresariado
nacional, pouco afeito ao pioneirismo e amante do rentismo.
O Brasil precisa livrar-se do modelo
de industrialização (tardia) dependente implantado nos anos 50 do século
passado, dependente do mercado fechado à concorrência, dependente de tecnologia
(importando tecnologia vencida), dependente de capital estrangeiro, caro, e
hoje dependente de exportações, para voltar-se para o mercado interno (que os
governos de Lula-Dilma têm expandido e vão continuar expandindo), contribuindo
efetivamente para o desenvolvimento (sustentável) do país e melhoria de
qualidade de vida de nosso povo, gerando empregos e redistribuindo renda.
Repitamos à exaustão: as potências se medem pelo tamanho de seus mercados
internos e sua soberania está na ordem direta de sua capacidade de atender autonomamente
às suas necessidades, capacidade medida pelo seu índice de desenvolvimento
científico e tecnológico.
Jamais seremos o país com o qual
sonham as atuais gerações enquanto dependermos da exportação de grãos, ou,
amanhã, de petróleo bruto.
O papel do Estado será crucial,
principalmente considerando as características de nosso empresariado, não raro
infenso à inovação e resistente a investir em pesquisa tecnológica (pois
prefere a dependência sem risco do pagamento de royalties). Para o que quer que seja, para qualquer
melhoria, seja econômica, seja social, precisamos, coletivamente, sociedade,
Estado, empresariado, enfrentar nosso verdadeiro calcanhar de Aquiles: um
modelo de educação mais que deficiente e uma universidade, privada,
descomprometida com a formação de profissionais qualificados.
Do ponto de vista ideológico, despertando
as entidades de classe de sua letargia, presas às miudezas do dia-a-dia, e no
silêncio da universidade, ao governo cumpre abrir e estimular e sustentar (sem
medo das viúvas do neoliberalismo) uma discussão nacional sobre nosso projeto
desenvolvimentista (que país queremos?) e, do ponto de vista de política
industrial, optar por aquelas linhas de
maior emprego de tecnologia avançada, garantidoras de nosso futuro, como a
nanotecnologia, a biotecnologia e a fusão nuclear, a fonte energética do futuro
próximo, necessária, limpa e barata. O país que fez a EMBRAPA, que construiu o
BNDES e o CNPq, pode e deve comandar esse processo. Mas é operação para já.
Não queremos, é certo, ser o ‘país do
futuro’, louvaminha que virou maldição. Mas seria igualmente trágico, agora que
começamos a tomar gosto pelo jogo do crescimento, nos tornarmos “aquele que
poderia ter sido e não foi”, como nos lembrava o sempre saudoso Darcy Ribeiro.
Por isso, cumpre agir. Dizem os chineses, sempre eles, que na vida há três
coisas sem volta: a flecha atirada, a palavra pronunciada e a oportunidade
perdida.
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